Finalmente havia chegado o momento da verdade. A investida firme e decidida dos tentáculos era a prova cabal da vontade que Raimi tinha de provar constantemente para si mesmo que era mais do que um coitado. Aquele gesto destemido e imprudente reiterava seus desejos insaciados por uma afirmação que nunca vinha. Desta vez, sorriu com prazer; seus olhos ávidos estampavam a satisfação no rosto sempre contorcido e de expressões cômicas. Quem sabe havia chegado o instante de descobrir deleite em bater os fortes, porque ele... ah, ele sim era um dos fortes! Contra tudo e contra todos durante toda sua miserável vida, Raimi venceu. Sempre se impôs às tragédias da vida com uma vontade reta e inabalável: custe o que custar, precisava continuar respirando, pois os mortos não sonham, e o que ele mais ansiava durante os intermináveis dias era pela chegada da noite para então poder dormir e, se tivesse sorte – pois ele sabia que nem mesmo Deus intercederia por ele -, encontrar com ela, sua preciosa genitora. Sua cosmo-energia se elevou ao ápice da existência, pois havia descoberto por conta própria que quanto mais colocasse seu coração ali, mais perto os sonhos estariam de sua plena realização. Talvez Raimi tivesse sido um excelente cavaleiro se as maldosas mãos do Destino tivessem desenhado sua fortuna de outra forma, em outra situação. |
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- Sim, vamos acabar com isto de uma vez por todas, cavaleiro de Athena. – disse com uma voz firme e séria, tão diferente dos ganidos altissonantes que costumeiramente saíam de sua garganta. |
Os anelídeos metálicos agora fechavam suas presas, com suas extremidades convergindo de forma a lembrar o desenho de uma pontiaguda pirâmide – estavam prontos para a perfuração final. Adentravam, pois, uma zona de fulgor argênteo, no centro da qual estava postado o corpo ereto daquele esplêndido guerreiro. Era visível em sua fisionomia que ele não temia aquele momento, não temia a morte; ele era um dos honrados que seriam glorificados postumamente, que receberiam coroas em seu cortejo fúnebre, que receberiam as medalhas e os louvores – e com toda a justiça! Em suas mãos, a chama que arde incessantemente na alma dos bravos tomava a forma de uma esfera em crescimento. Ele também estava no auge! Quando Raimi sentiu o impacto do primeiro tentáculo acertando o peitoral da armadura de prata, ele soube que não havia mais volta. Os demais ataques seguiam atingindo o musculoso corpo daquele santo, e ao traspassá-lo tornavam impossível qualquer movimento de evasão: ambos estavam agora ligados através daquelas serpentes invertebradas. Mas isso não importava mais: ainda que seu corpo fosse consumido no fogo, ele não encontraria nele a sua destruição. No calvário, encontraria a purgação e, quem sabe, a esperança de renascimento através das cinzas. Raimi sorriu contente com o seu destino, aceitando a morte como desfecho de sua triste história.
Enfim, um sentimento incompreendido foi finalmente decifrado. O capítulo final seria fechado com chave de ouro, enaltecendo a sua redenção. Lágrimas de enternecimento escorriam pelos sulcos de seu rostinho feio. Não era por Hades que Raimi erguia sua carcaça moribunda, não era pelos caprichos de um deus mesquinho. Era por causa de algo muito mais precioso, pela única coisa que fazia com que ele se sentisse amado em um mundo que claramente não era para ele. |
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“Mamãe, me desculpa... Não vou conseguir levar a cabeça de Athena para Hades, então... acho que não vou poder reencontrá-la nunca mais. Mas mesmo que eu padeça no limbo... eu continuarei ouvindo a sua voz no meu coração com todas as músicas que você nunca pôde cantar! Acho que tinha que ser assim, mamãe. Agora, pela primeira vez, eu tenho certeza de que posso merecer o seu amor, o amor àquela criança feia que você nunca pôde segurar.” |
Preciso confessar que eu menti para vocês, meus amigos, quando disse que Raimi não tinha talento para nada. E agora chegou a hora certa de falar sobre aquela sua imaginação extraordinária, que por vezes conferia-lhe o aspecto de um autista nas noites escuras dentro do quarto vazio. Para fugir da dor da realidade, a criança-verme se enclausurava em uma redoma de fantasia e passava as madrugadas em claro – lembram-se de quando eu mencionei suas “escuras olheiras de imemoriáveis noites sem sono tranqüilo”? – cantarolando e escrevendo músicas feitas especialmente para aquela voz que o guiava nas raríssimas noites de mansidão onírica. Raimi, acima de tudo, desejava levar a cabeça da deusa Athena para seu senhor, Hades, confiando na promessa de revê-la, pois sua alma estava em um local fora de seu alcance. Sua querida mãe descansava nos Campos Elíseos enquanto ele... bem, ele era um assassino!
Um dia, seu pai chegou em casa embriagado. Os motivos são irrelevantes, já que isso acontecia com tanta freqüência que às vezes nem era necessário um motivo. Raimi estava rabiscando em uma folha de papel - uma folha aparentemente simples, uma folha qualquer. Se não me engano, ela estava em cima da mesinha de madeira que servia de móvel principal no centro do casebre caindo aos pedaços. Contudo, no verso daquela folha comum havia algo escrito, e – pasme! – aquelas palavras desenhadas com uma letra torta, possivelmente rabiscadas com pressa, eram uma carta de seu irmão que havia saído de casa havia alguns meses por causa de seus compromissos políticos. A tinta da caneta de Raimi manchara a outra face do papel, tornando impossível sua leitura. Neste dia, seu pai queimou todos os cadernos que Raimi mantinha escondidos no fundo do armário de madeira mofada, além de tê-lo surrado impiedosamente. Este foi o dia em que Raimi resolveu sumir.
Raimi esperou seu pai dormir e – acreditem – ele ateou fogo em sua própria casa durante a madrugada. Ele deixou para trás todas as coisas e, com a roupa do corpo e algum dinheiro no bolso, saiu por aí. O resto vocês conhecem: mendigou até encontrar aquele velhinho que precisava basicamente de um escravo, um verme sem auto-estima para tratar como um capacho.
Mas voltemos ao presente. No presente se desenrolava uma cena de justiça poética, podemos dizer assim. Era em meio ao fogo que morria, assim como seu velho pai. E embora intimamente ele sempre detivera a plena certeza de que ele deveria morrer, que ele merecia morrer, agora seu coração rochoso se partiu e se desmanchou tornando-se poeira. Ele era o seu próprio pai, um ser cruel e desumano; ele pisou em cima dos sentimentos de muitas pessoas, ele matou os sonhos das crianças, ele despejou no mundo toda a dor que dele recebera... e acabou por se tornar igual a seu bêbado e obtuso pai. Talvez fosse por isso, por finalmente ter ciência dos sentimentos conflitantes em seu âmago, que ele aceitou a sua morte como o certo por ser natural. Era o fim do ciclo. |
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- Enquanto você luta para proteger o nome dos cavaleiros de prata, eu acreditava lutar por todos os vermes que foram pisoteados, por todos os mendigos nos quais as pessoas cuspiram, por todas as prostitutas que foram humilhadas. Eu acreditava que somente na morte as pessoas seriam iguais, e que os malditos seriam santificados sobre a terra. Eu acreditava que somente nas trevas todos teriam a mesma cor, e somente na escuridão haveria irmãos. Mas eu tive esse sonho por outro motivo, e é por esse motivo que eu lhe agradeço, cavaleiro. Eu lhe agradeço por me fazer ver tudo isso, e por fazer eu me sentir mais do que um palhaço inútil. Um dia, quem sabe, eu volte como um bravo assim como você. Um dia... |
Agonizou calado no meio das chamas enquanto sentia a dor intraduzível remover seus últimos momentos de consciência e lucidez. Estava no limite, e o frágil corpo do espectro não resistiria à potência de outra Fotia Roufihtra, de um ataque lançado com todo o espírito de um valente. Dizem que Raimi morreu sorrindo, e que pela primeira vez a sua feiúra foi capaz de comover alguém. Mas isso eu já não sei, eu não estava lá. |
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Fecha com chave de ouro, Preto! <3